domingo, 21 de março de 2010

Vício a Mais

– Alguém? – Chamei, mas ninguém era capaz de proferir uma palavra sequer. Sei que no momento não podia ser considerada uma figura comum – cabelos desgrenhados, marcas roxas e profundas nos olhos, de um tom avermelhado, o semblante intenso –, mas não era assim de todo mal. Só o que eu precisava era dormir. – Alguém?

– Oi. – Escutei. Uma voz fraca, fina como de uma criança, vinha de um canto mal iluminado. Aproximei-me. Ela parecia não ter mais do que doze anos e me olhava curiosa.

– Você é viciada em que?

Tentei absorver aquela pergunta. Então era assim que eu me parecia nesse momento? Uma viciada?

– Não, não sou viciada, eu apenas... Fugi de casa, estou cansada de andar a esmo, preciso dormir um pouco.

Sentei-me ao seu lado: ao lado de um anjinho, que era o que ela parecia a uma olhada mais próxima. Cabelos cacheados, olhos azuis como o céu, o vestidinho apenas um pouco sujo do que me pareceu fuligem. O que um anjo fazia num beco escuro como aquele, naquele estado? Ela me ofereceu colo, e me encolhi no chão com a cabeça em suas pequenas perninhas.

– Como não é viciada? – Ela me perguntou, surpresa. – Então é por isso que está triste assim! Não tem um vício, não tem um motivo para ser feliz.

Ela fez sua conclusão como quem tem a certeza de um bom feito. Não parecia fazer sentido... Ou então a palavra não me fazia o mesmo sentido que deveria fazer para ela.

– Então, me diga, você é viciada em que, exatamente? – Ela sorriu, largamente. Correspondi, sorrindo também.

– Isso, você descobriu! Sou viciada em sorrisos, gosto de ver e de fazer as pessoas sorrirem. Por que estava triste assim? Não tem um vício? Ou arrancaram o que você tinha?

Mirei o chão, pensativa. Sim, haviam me arrancado, e tudo o que eu fiz foi fugir, ao invés de lutar; mas eu não me daria por vencida assim tão fácil, não novamente. Eu iria lutar SIM.

– Não, pequeno anjinho, tentaram, mas não conseguiram me arrancar do vício. Só se um dia me tirarem o cérebro. Sou uma viciada em sonhos!

E então ela sorriu novamente, aquele sorriso largo de criança. Compreendeu o que eu dizia.

– Uma viciada em sonhos... E qual o seu sonho mais bonito?

Pensei por alguns instantes, mas não era necessário.

– O sonho de minha mãe, de minha irmã, de meu irmão, de que meu pai volte são e salvo da trincheira. – Admiti, meio pesarosa. – Mas acho que é o único sonho bonito que eu não vou conseguir fazer real, porque só eu acredito nele.

O anjinho pensou, pensou até suas bochechas ficarem rubras de esforço. Mandou-me voltar para casa e não brigar mais com ninguém que me dissesse que eu era mentirosa, que ele não ia voltar. E, mesmo calada, eu continuava acreditando.

Uma semana se passou do ocorrido, até que eu ouvi o barulho dos passos arrastados que eu tanto amava, a mão morena abrindo vagarosamente o portão. Antes de abraçá-lo, dei meu sorriso mais bonito, o combustível que o anjinho precisava para voltar para sua casa nas nuvens.

"Morfeu"logia

Cada pessoa tem uma rotina diferente e uma determinada quantidade de horas de sono que precisa por noite, para se sentir disposto. Napoleão Bonaparte se satisfazia com apenas quatro horas, já Einstein não era ninguém no dia seguinte se não dormisse dez horas sem parar. Mas em uma coisa todo mundo chega um acordo: gente que não dorme fica chata, insuportável mesmo.

Conheci certa vez um garoto que estava sempre carrancudo, mal humorado e era o mais lento para entender as explicações. Tinha alguns amigos, mas eram poucos.

Um dia, em um sábado à tarde, creio eu, encontrei-o em um café, estudando. Na hora, não consegui entender bem o porquê, mas ele parecia... Calmo. Chegou a sorrir quando me viu e eu nunca o tinha visto fazer isso.

— Nossa, você me parece tão bem, tão alegre... O que aconteceu, hein? Viu o passarinho verde? — Perguntei. Ele riu.

— Não, não, eu apenas me sinto melhor que o normal. Ontem, eu dormi na casa de uma tia e parece que hoje tudo rende... Falando em render, vamos estudar? Tenho algumas dúvidas.

Começamos a estudar e ele em nada se parecia com aquele garoto lerdinho da sala de aula. O tempo voou.

— Infelizmente, eu tenho que ir. Mas, conta, o que você tomou na casa da sua tia para ficar assim?

— Nada, só dormi mais cedo. Minha casa é muito barulhenta à noite: meu pai é músico; minha mãe, escritora, ambos adeptos à “força criativa da lua”. — Disse, num leve deboche. — Acabo conseguindo cochilar quando já está quase amanhecendo.

Saí de lá preocupada com ele, havíamos descoberto o problema, só faltava a solução.

Na semana de recesso que seguiu o episódio no café, acabei me esquecendo do ocorrido. Na segunda-feira, quando o vi no colégio novamente, sorrindo, rodeado de gente, surpreendi-me, sabia que algo tinha mudado e para melhor. Ele veio até mim e sorriu.

— Obrigado pela conversa. Mudei-me para a casa da minha tia.

E apenas três meses depois, conseguiu a vaga na Medicina, tão sonhada, desde o primeiro dos cinco anos de cursinho.