Vou sentir falta daqui, pensou ele, saindo da sala de cinema. Entendera perfeitamente as legendas do filme, mesmo que algumas palavras parecessem bem bizarras. Andou mais um pouco pelo centro comercial Vasco da Gama, vestiu o casaco antes de sair pela porta dos fundos e ir ver o rio Tejo. Teve vontade de visitar o Oceanário mais uma vez, ver os pinguins, as arraias, as estrelas-do-mar. Mas não seria a mesma coisa sem ela, então desistiu. Sentou-se numa pizzaria moderna, aos pés do rio, quase no Oceanário, pediu um prato e uma água. Comeu lentamente. Sentiu que era capaz de viver naquela cidade sem muito esforço. Lisboa era mágica e não oferecia empecilhos a quem tentava a ela se adaptar. Ao contrário, parecia acolhê-lo sem reservas, respeitar seu sotaque brasileiro, mais lento e cantado, tratá-lo como igual. No dia seguinte iriam a Barcelona. Ele queria andar mais à beira do rio, ver as praias de Cascais, ir a Sintra outra vez ver os castelos, andar a pé, de trem — comboio, como dizem os portugueses —, de metro, dar risada do sotaque da moça que dizia “próxima estação, Saldanha. Há correspondência com a linha vermelha”. Sentia-se livre. Sabia que em Barcelona ninguém o entenderia quando falasse, que ficaria preso andando junto com Anne. Mas estava tão feliz ao lado dela que um pouco de esforço não faria mal. Voltou ao shopping, em busca de algo com o qual pudesse presenteá-la. O Natal já estava chegando e ele sabia que era sua última oportunidade de andar sozinho. Escolheu o que queria, saiu do shopping e atravessou até a estação Oriente do metro. Pagou a tarifa de 1,25 euros, pegou o metro sentido São Sebastião, desceu na estação Saldanha, pegou a linha amarela até o terminal Rato, caminhou até o Jardim Botânico, virou a direita antes do Bairro Alto e enfim voltou ao apartamento. Terminou de arrumar suas malas — não queria dar trabalho quando Anne chegasse — e esperou. Não demorou muito para que ela chegasse do trabalho. Estava cansada, física e mentalmente, mas só de vê-lo ali, esperando por ela, já teve vontade de cantar.
— Demorei? Mil desculpas. Parece que o mundo resolveu passear de metro e ir até o Chiado só para me azucrinar! — Anne descalçou os sapatos e correu para os braços dele. — Você ficou sozinho? Comeu? Está bem?
Ele sorriu, terno.
— Faz parte... Fui passear no Vasco da Gama. Passeei bastante, fui ao cinema, andei entre as bandeiras do Parque das Nações. Só não fui outra vez ao Oceanário ver os golfinhos porque não teria graça sem você. Cheguei agora há pouco, só terminei de fazer as malas e você chegou.
Sentou-se em seu colo, de lado, e roçou de leve o nariz no dele.
— Lindo. Fico feliz que tenha se distraído.. Você saiu bem agasalhado, né? Está frio lá fora. E em Paris a coisa vai piorar... Está nevando na cidade-luz. Estou utilizando todos os meus métodos evasivos para passarmos o mínimo de tempo por lá. Embora seja uma cidade linda, eu vou ter que trabalhar demais e nem vou poder curti-la com você.
Ela fez um bico de desaprovação. Ele a beijou de leve, como se dissesse que estava tudo bem. Ele estava de férias, ela não. Entendia a situação e isso não seria um empecilho.
— Pois bem, senhorita vice-cônsul. Já que as coisas no Consulado Brasileiro no chiado não foram tão alegres assim, deixe-me preparar um banho para você. E quem sabe, se for uma boa menina, não ganha uma massagem também?
Fez cócegas nela até que ela caísse no colchão, rindo. Depois beijou-a, feliz por tê-la em seus braços.
—xxx—
A viagem de trem fora longa, mas Barcelona não era tão ruim quanto imaginou. As pessoas eram incrivelmente receptivas com turistas, desde que ele se mostrasse perdido e não-falante do castelhano. A rixa com Madrid era latente. A partir daí, os catalães o olhavam nos olhos, sorriam, tentavam encontrar uma língua comum. A maioria deles falava o inglês. Matheus se arrependeu um pouco de ter largado seu curso de inglês no meio, mas o básico estava conseguindo fazer. E como já estavam muito próximos do Natal, sua noiva passava mais tempo com ele, e somente isso já era mais do que uma bênção.
Na manhã do dia 24, o dia amanheceu gelado e cinza. Anne o acordou para que fossem ver a missa na catedral da Sagrada Família, de Gaudi. Matheus nunca tinha visto uma construção tão maravilhosa. Fez questão de tirar muitas fotos para mostrar quando voltassem ao Brasil. Depois, andaram um pouco pelo Arco del Triunfo. Eram muitas paisagens bonitas para apenas uma viagem. Ficava até difícil saber o que ele havia achado mais lindo.
Almoçaram com calma, num restaurante tipo buffet, para que não tivessem que ler cardápios nem fazer pedidos. Anne se preocupava em deixar que ele tivesse autonomia e, com essas pequenas coisas, procurava facilitar sua comunicação e adaptação. À tarde, foram rapidamente ao supermercado, lotado de gente. Terminaram os preparativos para a noite de Natal quando o céu já estava escuro. Anne tinha alguns amigos que os convidaram para uma festa grande, com ceia, Papai Noel para as crianças e tudo mais, mas ela não queria. Já havia feito isso muitas vezes. Fez questão de passar o Natal somente com Matheus, no apartamento.
À noite, ligaram para o Brasil para cumprimentar os familiares. Os olhos dele encheram-se de lágrimas ao escutar as bênçãos da mãe, do pai, da irmã. Era o primeiro Natal que passava longe deles. Anne conversou com a mãe, com a irmã, com o sobrinho. Pela primeira vez, não desligou o telefone e foi chorar escondida, sozinha. Simplesmente abraçou o noivo e, com um sorriso, desejou-lhe Feliz Natal assim que o relógio bateu meia-noite, três horas antes do que no Brasil.
— Presente! Presente! — Gritou ela. Saiu correndo como uma criança para buscar um embrulho enorme no armário. Ele se sentou na cama para esperar. — Espero que goste.. Acho que vai ser útil.
Matheus abriu o pacote com cuidado, separando três outros pacotes menores: um cachecol, uma calça de inverno com um par de meias de inverno e um sobretudo forte. Se pudesse colocar uma legenda, seria, com certeza, kit de sobrevivência na neve. Sorriu. Ela tinha bom gosto desde sempre para presentes.
— Eu não queria dar algo inútil. Sei que não é o presente mais esperado, mas não quero que passe frio e...
— Eu adorei.
—...Mesmo?
— Sim. Obrigado.
Ela o beijou, feliz. Que ele jamais soubesse, mas na época do namoro sempre levava sua mãe ou Denise para ajudá-la com o presente. Era péssima com gostos masculinos. Fora quase impossível escolher dessa vez.
— Espere. — Disse ele, separando os lábios dos dela. — Eu também comprei um presente para você.
— Presente? Math! Não precisava, sério.
— Eu fiz questão. Achei que combinasse com você. — Remexeu na mala até encontrar o embrulho, cor de pêssego, com o símbolo de uma famosa loja de lingeries. — Mas, se gostar, vai ter que usar para mim, certo?
— Mas veja só, um presente com segundas intenções! — Empurrou-o de leve, em falsa reprovação. Abriu o embrulho delicado: uma camisola de cetim. Linda, cor de pérola, com uma renda delicada na barra e pequenas pedrinhas no decote. Colocou-a na frente do corpo: do tamanho exato para ela. Ficou sem palavras, emocionada com a beleza e a delicadeza do presente. — Como?
— Comprei-a em Lisboa. Sabia que não conseguiria escapar de você e sair sozinho para comprar algo aqui na Espanha. Queria algo especial, como você. Acertei?
— É exatamente do meu tamanho.
— Eu conheço bem esse corpo há muitos anos, morena. Acha que eu poderia errar?
— Convencido. — Mostrou a língua. Ele se inclinou para frente, como se ameaçasse mordê-la. Ela riu.
— Agora vá vestir que eu quero ver como fica.
— Não. — Fez birra.
— Sim! — Ele pediu. Quando ela negou, ele fez manha, até que ela caísse na risada. Piscou de leve um olho e se levantou com a camisola na mão. Aumentou um pouco o sistema de aquecimento do apartamento e foi até o banheiro trocar de roupa.
Não podia acreditar no que via quando a vestiu. Voltou ao quarto incrédula, levemente envergonhada, deixando Matheus sem fala. Ela ficara mais bonita do que ele tinha sido capaz de imaginar. Estendeu uma taça de champanhe para ela. Brindaram sem emitir uma palavra. Sorriram um para o outro, cúmplices. Ele tomou sua mão e a fez girar o corpo, mostrando o presente. Abraçou-a e beijou-a na testa, com ternura. Ela parecia querer dizer algo, mas continuava calada. Ele a olhou fundo nos olhos.
— É o melhor Natal que eu passo desde que me tornei diplomata. Obrigada.
— Ainda passaremos muitos Natais juntos. Casa comigo...
Ela olhou o anel de noivado em seu dedo, que já usava desde que saíram do Brasil. Não tinha a mínima intenção de mudar de ideia.
— Caso. — Beijou-o de leve no nariz — Caso.
Ele sorriu espontâneo, tomou-a nos braços de forma gentil e a beijou, naquela noite em que a neve caía suavemente lá fora — fenômeno inusitado para a cidade — e que com certeza ficaria marcada em suas memórias.